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AS RELAÇÕES ENTRE A POESIA E A FILOSOFIA

por BENEDITO NUNES

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE. Revista semestral de poesia. Ano 8   Numero 13  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional. Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro,  2000. Editor executivo: Ivan Junqueira.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

Dois são os tipos de relação entre a poesia e a filosofia que podemos distinguir de imediato: um de caráter disciplinar, outro transdisciplinar. No primeiro, cumprindo tarefa preliminar da estética, a filosofia se empenha em conceituar a poesia, em determinar-lhe a essência, para ela um objeto de investigação, que recai, como qualquer outro (a matéria, o espírito, Deus) em seu âmbito reflexivo e crítico. Unilaterais, as relações de caráter disciplinar são também unívocas: poesia e filosofia se apresentam, de antemão, como unidades separadas — aquela pertencente ao domínio da mimese, da fantasia, do imaginário, da linnguagem rítmica e figurada, esta ao do entendimento racional, do conceito, da razão explicativa e da apreensão do real. Formariam, portanto, diferentes universos de discurso; a filosofia, porém, movida por um interesse cognoscitivo, que tende a elevá-la mediante a elaboração de conceitos, acima da poesia, então sob o risco de ser depreciada como ficção, e assim excluída do rol das modalidades de pensamento. Por isso, a última é considerada inferior ao saber conceitual, que a supera ao explicá-la ou compreendê-la. Com tais formulações, estamos recompondo, de maneira muito precária e esquemática, o raciocínio de Hegel em suas Lições de estética, repetido por quantos limitam a relação que estamos apreciando a esse primeiro tipo, súmula da tradição clássica, iniciada em Platão, e que consagra a superioridade hierárquica do filosófico sobre o poético.

         O segundo tipo, denominado transdisciplinar, remonta à quebra, pelos românticos alemães, que participaram da elaboração do idealismo germânico, em cujo topo se incluiria o sistema hegeliano, dessa superioridade hierárquica. Pensando na Divina comédia, nos teatros de Shakespeare e de Calderón, nos românticos alemães, Friedrich Schlegel e Novalis sobretudo, que conceberam o nexo entre poesia e filosofia como produto de um gênero de criação verbal que nos daria obras de mão dupla, poéticas sob um aspecto e filosóficas por outro, a exemplo daquela de Dante, do De rerum natura, de Lucrécio, e do Fausto, de Goethe. Enquanto Schelling, no Sistema do idealismo transcendental direciona a filosofia poeticamente, Schlegel e Novalis direcionam a poesia filosoficamente. Em comum, visavam à mutua conversão de ambas, tentando legitimar resultados híbridos: filosofia poética e poesia filosófica, poeta-filósofo (philosopbierende Dichter) e filósofo- poeta (dichtende Philosoph). Para o inglês Coleridge, Shakespeare era o poeta filosófico e Platão, o filósofo poético. Não se embaraçariam esses híbridos com as abstrações — e com as contradições - que torturam os filósofos puros; a prestimosa poesia logo haveria de corrigi-las com a sua sensível concretude devida à imaginação. "What shocks the virtuous philosopher, delights the camaleon poet", afirmava Keats.

         O poeta-camaleão se deleitava com a carga de pensamento reflexivo que a partir daí ingressou na poesia, fortalecida por dotes de intuição própria e resguardada pela imaginação criadora (imagination), distinta da fantasia (fancy), que Coleridge se extremou em diferenciar na sua Biographia literária, nessas páginas onde se aproxima de Kant e Schelling, seus mestres filosóficos. Era isso um prelúdio à linguagem mista da lírica moderna, aderente à "prosa do mundo" e ao ritmo, ao fulgor da palavra mágica e encantatória, com acentuados traços de religiosidade e anti-religiosidade, à busca, antes de qualquer outra arte, de uma unio mística secularizada, depois de, pela primeira vez, tendo por fundo a crise da metafísica, que despontara em Kant, perpetrar a "morte de Deus" (Baudelaire, Rimbaud). No terreno filosófico, essa crise possibilitava a descoberta e a tematização do elemento pré-teórico da experiência humana, no qual a linguagem se inclui, primeiramente exposto pela Lebensphilosophie (filosofias da vida) e posteriormente, com uma relevância ontológica, pela filosofia de Heidegger, matriz tanto do existencialismo sartriano quanto da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty.

         Existência individual, sentimentos fundamentais, como a angústia e o tédio, ser-no-mundo, como situação prévia à elaboração das categorias, conhecimento científico como possibilidade histórica, e a fala (linguagem), em sua concreta universalidade — todas essas noções, a que se somam o mundo-da-vida (Lebenswelt) husserliano e a historização do ser-aí (Dasein) enquanto poder-ser livre, em Heidegger, saturam a filosofia, já reflexão centrada numa pretensa experiência bruta, preliminar à atitude teórica e dela determinativa, tronco comum de que se esgalhariam religião, filosofia e poesia, regidas por intencionalidades diferentes, igualmente legitimáveis e contingentes. Conceituado como Dasein, e assim como poder ser, ente do longínquo, jamais coincidente consigo mesmo, o homem é ser de imaginação, e não apenas de razão. Será dispensável, agora, a apologia da imaginação feita antes por Coleridge.

                Salto da imaginação para além do conceito (Kant já o sabia em sua Crítica do juízo), firmado no mesmo fluxo da fala cotidiana, a poesia teria induzido, como boa parteira, o nascimento da filosofia; regeria depois o seu desenvolvimento, estampando-se nas metamorfoses da linguagem ordinária, de que também necessita o discurso filosófico, suscetível de alcançar a individualização de um estilo. Um pensador anticartesiano do século XVIII, Vico, antevira esse parto, quando, antecipando-se ao conhecido From Religion to Philosophy, de Francis Cornford, postulou a prioridade da linguagem poética, reguladora entre os povos da primeira forma de saber, que também engloba o mito, fonte de uma "metafísica sentida e imaginada", ordenada pela lógica dos tropos, na qual se destaca a metáfora, que vem a ser "uma pequena fábula", ainda viva nos primevos poetas-filósofos, os pré-socráticos. Nenhuma filosofia vive sem metáfora (vejam-se o rio de Heráclito, a caverna de Platão, o "gênio maligno" de Descartes, o torrão de açúcar de Bergson) etc.; e toda verdade pronunciada, conforme martelou Nietzsche, deixa atrás de si "uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos —  em suma, uma soma de relações humanas poética e retoricamente realçadas, transpostas, ornadas...".

        

         Companheira da poética, a retórica atuaria individualizando o discurso filosófico por meio de variáveis meios de persuasão (complementares aos e, às vezes, confundidos com os meios lógicos de demonstração), de que tratou, com inexcedível acuidade, nos anos 50, em sua Metaphilosophie, o injustamente esquecido Henri Léfèbvre. O mecanismo expositivo das questiones, os circunlóquios de Descartes (estratégias, dir-se-á hoje), a ordem geométrica das proposições de Spinoza, as retificações kantianas (nas introduções das Críticas), o pensamento "romanceado" de Hegel, principalmente na Fenomenologia do espírito (o herói é o mesmo espírito, conforme observaria Santayana), a belle écriture bergsoniana, o estilo journal intime de Kierkegard (compare-se com o Diário de Amiel), os trocadilhos e paronomásias heideggerianas figuram entre os mais conhecidos expedientes de persuasão.

         Mas cada filosofia tem seu arsenal retórico próprio. A retórica sartriana começa num romance, La nausée, que precedeu o tratado L´être et le néant, o qual estabelece uma ontologia dramática, com desdobramentos nas peças teatrais do filósofo. Descrevendo a experiência perceptiva, Merleau-Ponty nivelaria o artístico ou o poético ao filosófico. Por fim, Heidegger, depois de Sein und Zeit, atribuiu à filosofia a missão de "dialogar" com a poesia, do que esperava resultasse, sem o sacrifício do Stimmung (disposição afetiva) e do canto, um "pensamento poético" (dichtende Denken) ou, inversamente, uma poesia pensante (denkende Dichten) superando a filosofia, cujo nome desaparece nos principais momentos de tal dialogação.

         A partir daqui será forçoso admitir-se ainda uma relação transacional — terceiro e último tipo — entre a filosofia e a poesia, cada qual demandando e polarizando a outra no traçado de distintas trajetórias intelectuais, que talvez se intercruzem, como viria a propor a seus estudantes um heterônimo do poeta Antonio Machado, Juan de Mairena, professor de retórica: "Hay hombres, decia mi maestro, que van de la poética a la filosofia; otros que van de la filosofia a la poética. Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro, en esto como en todo" (Juan de Mairena: Sentencias, donaires, apuntes e recuerdos de un professor apócrifo. Madri: Alianza Editorial, 1981, p. 166). Não é descabido dizermos que a primeira parte do percurso descreveria o movimento de poetas, como Antonio Machado, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Paul Valéry e Mallarmé, na direção da filosofia; e poríamos na segunda parte filósofos como Gaston Bachelard, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Michel Foucauld e Paul Ricoeur, movimentando-se na direção da poesia.

 

Publicado em junho de 2018

 


 

 

 
 
 
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